Entenda por que os exames toxicológicos são tão peculiares

Entenda por que os exames toxicológicos são tão peculiares

Entenda por que os exames toxicológicos são tão peculiares

A melhor matriz biológica para cada exame vai depender do objetivo com que ele está sendo realizado

A análise toxicológica para verificação do consumo de drogas vem sendo utilizada no meio profissional – caso dos concursos para cargos públicos e para motoristas profissionais que queiram tirar ou renovar a carteira de habilitação nas categorias C, D e E; no esporte, no exame para fins forenses, como nos casos de homicídios ou suicídios; no auxílio e acompanhamento da recuperação de usuários em clínicas de tratamento e em pesquisas. A matriz biológica escolhida para análise depende da finalidade do exame, podendo ser de fluidos corporais, como a urina, o sangue, o suor e a saliva, ou de amostras de queratina, como cabelo, pelos e unhas. Nesse caso, o uso do cabelo é o mais comum.

O exame toxicológico de sangue é ideal para identificar se a pessoa estava sobre efeito da substância no momento da coleta do material biológico. “É utilizado normalmente em casos de acidentes de trânsito com vítimas. O ar exalado, para o caso do álcool, também pode ser utilizado nessa situação”, explica Daniel Junqueira Dorta, professor do Departamento de Química da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP de Ribeirão Preto e membro diretor do Comitê Executivo da International Union of Toxicology (IUTOX).

Já o exame de urina identifica um contato recente com a substância, que pode, no entanto, já não ser mais detectada no sangue e ser detectada nos próximos dias na urina. Esse teste pode detectar o consumo de maconha até 20 dias após o último uso e o de cocaína até sete dias após o uso, no caso de usuários constantes. No caso de usuários eventuais, esse prazo diminui para 15 e 4 dias, respectivamente.
“Importante salientar que há um pequeno intervalo entre o momento do contato e o início do aparecimento da substância na urina, que pode ser diferente de um indivíduo para outro, devido à velocidade de metabolização da substância”, diz Dorta. Vale dizer também que o exame feito com amostra de urina não permite distinguir o usuário leve do moderado ou pesado.

O cabelo, explica Dorta, é uma boa matriz biológica para identificação de substâncias utilizadas há algum tempo por ser altamente estável, já tendo sido utilizado para detecção de substâncias psicoativas em múmias, por exemplo. É possível detectar substâncias que foram utilizadas há meses ou mesmo anos. “No entanto, não é possível detectar um consumo no momento da coleta ou um consumo recente, já que em média demora cerca de sete a dez dias para que a substância comece a aparecer no cabelo”.

A melhor matriz biológica para cada exame vai depender do objetivo com que ele está sendo realizado. Para análise de dopagem, por exemplo, a urina é uma boa matriz biológica, pois mostra se o atleta fez uso recente da substância química. Já em caso de acidente de trânsito ou crime ocorrido supostamente sobre efeito de drogas de abuso, a matriz deve ser o sangue, pois só ele mostra se o indivíduo está sobre efeito da substância no momento do crime ou do acidente.

Janela de detecção

Marcello Santos, diretor executivo da Psychemedics

A janela de detecção – período no qual é possível detectar o consumo de drogas – varia conforme a amostra e a técnica utilizadas. O sangue é o que propicia uma menor janela de detecção, que varia de algumas horas a, no máximo, um dia, por isso, explica Marcello Santos, diretor executivo da Psychemedics, laboratório especializado nos exames de larga janela de detecção em amostras de queratina, é uma das piores matrizes biológicas, pois só é possível detectar a presença de substâncias nas primeiras horas após seu uso.

Já a urina propicia uma janela de detecção que pode chegar a dez dias, no caso de consumo intenso de drogas lipossolúveis, como a maconha. A queratina, que usa amostras de cabelos, pelos e unhas, é a que oferece maior janela de detecção.

Mas quais as principais vantagens e desvantagens de cada matriz? No caso do sangue, por exemplo, explica Dorta, as vantagens estão na facilidade de coleta, na disponibilidade em grande quantidade, no fato de a relação entre a concentração da substância e os efeitos no organismo estar bem estabelecida e na possibilidade de detecção logo após o contato com a substância, antes de ela ser metabolizada. Já as desvantagens estão no fato de ser uma coleta invasiva e que possui uma matriz complexa, com muitos interferentes para análise.

“A urina também é de fácil coleta e a substância pode estar presente tanto na forma original como na metabolizada; porém, ela oferece maior risco de adulteração e diluição”. E o uso de amostras de cabelo, apesar de algumas desvantagens, como o fato de ter um custo maior, da possibilidade de contaminação ambiental, da falta de correlação entre a concentração de substâncias no cabelo com a dose e/ou o tempo de administração, pode detectar e quantificar substâncias utilizadas há meses.

Segurança nos resultados

Os ensaios de toxicologia são bem abrangentes e podem envolver uma série de soluções instrumentais e analíticas

Vários fatores podem interferir na obtenção dos resultados ou na sua interpretação. Na coleta de sangue, por exemplo, é preciso atenção na escolha correta do anticoagulante; no cabelo, cuidado extra para evitar contaminação externa. A velocidade de metabolização do organismo também pode ser um fator interferente, que pode diminuir ou aumentar a concentração de uma substância no sangue, alterando a velocidade com que ela é excretada. “Medicamentos também podem contribuir para aumentar ou diminuir essa velocidade de metabolização”, ressalta Dorta.

Segundo Santos, da Psychemedics, alguns medicamentos que contenham codeína, utilizada para controle da dor moderada, podem ser detectados no exame. Nesse caso, o doador deve sempre reportar seu uso a quem está coletando a amostra. “Na urina, os medicamentos podem alterar sua estrutura, acidificando ou basificando o meio, o que impede que a substância apareça na forma tradicional de extração”, diz Dorta.

Ele explica que o cabelo acaba sendo uma opção para os testes porque é uma matriz única, onde não há metabolismo e excreção ativos para remover as substâncias químicas nele depositadas. “No entanto, a concentração das substâncias no cabelo tratado depende de fatores como distância da raiz, já que decréscimo significante na concentração da substância química pode ser observado após vários meses devido à lavagem e à radiação UV; da cor do cabelo e da porcentagem de cabelos nas fases anágena (fase de crescimento ativo) e telógena (fase de repouso). Por isso, muitas vezes não é fácil correlacionar a concentração das substâncias psicoativas encontradas no cabelo com um padrão de consumo”.

Diante disso, é preciso cuidados no preparo e na coleta das amostras. E na análise de substâncias em cabelo, diz Santos, este processo é ainda mais importante para evitar resultados falsos-positivos devido à contaminação ambiental. “O método de descontaminação para remover a contaminação ambiental deve incluir um protocolo de lavagem antes da análise da amostra. Ele deve ser validado pelo laboratório e pode utilizar solventes aquosos ou combinação de solventes orgânicos”, ressalta.

Após a lavagem, o cabelo é segmentado em pedaços de 1 cm, a partir da raiz, identificados e separados, pois cada segmento de 1 cm corresponde a aproximadamente um mês de exposição. Em seguida, estes segmentos são pulverizados e submetidos a procedimentos de extração para análise nos equipamentos.

“Outras matrizes biológicas, como sangue e urina, também devem passar por processo de preparo de amostras, porém, para urina, esse preparo é mais simples, por se tratar de uma matriz sem muitos interferentes. Já para o sangue, o preparo de amostra é mais trabalhoso, pois é uma matriz complexa, com muitas proteínas e diversas substâncias químicas produzidas endógena ou exogenamente”, comenta Dorta.

Marc Chalom, gerente de Aplicações da Thermo Fisher Scientific

Segundo Marc Chalom, gerente de Aplicações da Thermo Fisher Scientific, um dos principais focos de atenção deve estar na extração completa do analito da matriz, minimizando ao mesmo tempo os coextraíveis que, dependendo da técnica, podem interferir analiticamente na amostra. “Questões como abertura da amostra, solubilização e volatilização do analito devem ser levadas em conta nessa etapa da marcha analítica. Todos esses cuidados visam garantir a quantificação exata do composto-alvo no ensaio analítico”.

A coleta de amostras de matrizes biológicas é uma das fases mais difíceis do processo de exame de substâncias químicas. Por isso, explica Santos, deve-se respeitar todo o processo inerente à cadeia de custódia associada ao exame. “A coleta deve ser assistida por testemunhas e uma série de documentos deve ser preenchida e assinada”. Os cuidados nos procedimentos passam pela coleta, pela identificação e pelo acondicionamento da amostra; pelo correto armazenamento; pelo transporte, pelo recebimento e registro nos laboratórios para exames; e vão até a manipulação durante as análises laboratoriais, guarda de parte do material para eventual nova análise e elaboração do laudo final.

Cuidados também devem ser tomados com os equipamentos utilizados na coleta e análise das amostras. “Os ensaios de toxicologia são bem abrangentes e podem envolver uma série de soluções instrumentais e analíticas, desde analisadores fotométricos discretos, passando por analisadores baseados em espectrometria de massas em equipamentos de LC-MS (cromatografia líquida acoplada à espectrometria de massas), cromatografia gasosa e GC-MS (cromatografia gasosa acoplada à espectrometria de massas), além de sistemas espectrométricos para determinação de metais, como é o caso do sistema de absorção atômica com forno de grafite ou até ICP-MS”, explica o especialista da Thermo.

Além disso, salienta Santos, da Psychemedics, a calibração dos equipamentos é fundamental e pode influenciar diretamente no resultado do exame. Em geral, esses sistemas são calibrados e qualificados na fábrica e qualificados novamente após sua instalação nos laboratórios. “As manutenções preventivas devem ser realizadas com uma periodicidade que varia de seis meses a um ano, e o funcionário que opera o equipamento deve ser treinado e capacitado para operação, troubleshooting e boas práticas dos equipamentos”, complementa Chalom.

Diz ele que o grau de confiança dos testes é bastante alto devido à seletividade das técnicas analíticas empregadas. “O mais importante é garantir a integridade da amostra desde o momento de coleta e armazenagem, assim como garantir a integridade do analito durante as etapas de preparo da amostra”.

Por Cristina Sanches